sábado, 19 de março de 2011

Proseando sobre... Cisne Negro


Darren Aronofsky, um dos grandes diretores da atualidade, autor de verdadeiros primores cinematográficos como “Réquiem para um Sonho” e “Pi”, filmou recentemente o que poderia ser sua obra consolidante. Dono de uma filmografia invejável, o diretor transforma seus filmes em obras contundentes, pesadas e provocativas, muitas vezes estabelecendo padrões incomuns a seus personagens – e quando digo incomuns, me refiro ao não aceitável socialmente. Recentemente mergulhou numa história sobre o balé, precisamente numa adaptação de “O lago dos cisnes” de Tarkovsky e mostrou que a dançarina principal, Beth MacIntyre (Winona Ryder), o foco das atenções do espetáculo, está em decadência. É preciso encontrar uma nova estrela. Não demora para o diretor do espetáculo vivido por Vincent Cassel se deparar com Nina (Natalie Portman), um promissor talento, e decide investir na moça. Essa não esconde a satisfação, deseja ser perfeita e se transformar no dicotômico principal personagem: o cisne branco e o cisne negro.



Portman está absolutamente brilhante, vive sua mais intensa personagem no cinema e revela definitivamente a grande atriz que é. Sua delicadeza tão bem representada em seus gestos e em seu olhar nos faz postergar qualquer iniqüidade, e tal como a peça que encena, terá de se converter de uma delicada e ingênua garota numa sedutora e pungente mulher. Sua personagem pouco a pouco se transforma nos contaminando com graça e lascívia. Natalie exuberante perverte nossa mente, censura sua ilusão e racionaliza – estamos diante de uma personagem complexa, confusa e irresistivelmente enigmática. Mérito tanto da atriz como de Aronofsky que tira de Portman um desempenho perfeito, fazendo a atriz abandonar o estigma frágil que por muito tempo lhe permeou.  

Nina tem uma personalidade bastante destacada. Vivendo uma vida infantilizada, e isso é esboçado na composição de seu quarto rosa onde fica rodeado de ursos de pelúcia, quase nunca demonstra autoridade sobre sua individualidade. As constantes discussões com a mãe denuncia sua dependência maternal – a cena a qual Nina se masturba e percebe sua mãe ao lado num claro simbolismo sobre castração é primorosa. O não pode e o não deve parece fazer parte de sua vida de maneira abusiva. Quase sempre de branco, a personagem de Portman é realçada como o cisne branco – a inocência – e numa contraposição a essa persona, sua mãe (que nunca dispensa um coque) e uma outra bailarina de destaque vivida por Mila Kunis utilizam o preto, condição futura a qual Nina precisa conquistar.

Há ousadias atravessando “Cisne Negro”. Transformar um filme cuja temática é o balé num intenso thriller psicológico é uma tarefa árdua para qualquer produção. Como numa coreografia da dança, o filme se desenvolve com naturalidade e coloca sua protagonista frente a horrores pessoais. Para isso, recursos como som e fotografia perpetuam um tipo de delírio onde Nina percebe risos de escárnio a sua volta e às vezes enxerga sombras e rostos confusos, confundindo com o seu. A impressão é de estar se confrontando em vários instantes, as cenas no metrô ou as caminhadas nas ruas escuras deixam claro esse duelo interno. Tal obscuridade se concentra na perspectiva projetada desta bailarina: ela quer ser impecável no que faz e sofre prejuízos drásticos com isso. Sua técnica durante o ensaio é um marco. Sua dificuldade em se tornar o modelo ideal de seu treinador é compreensível. Aí a personagem sofre, quase se pune e em sua tamanha dedicação se fere. Parece viver o balé, respira-lo. O chão de sua casa demonstra seu repetitivo esforço com as marcas da sapatilha. Repetir, aliás, é algo recorrente.

De novo, de novo, de novo... ela passa horas reproduzindo um mesmo movimento buscando um ideal aparentemente inatingível. A cobiça pela excelência transpõe limites como também sua sanidade. Nina é motivada não só por ambição pessoal, mas pela disputa, sucesso e glamour. Ela se revela uma bailarina perfeita e se transforma monstruosamente, fantasmagoricamente – a direção artística é irrepreensível. Este simbolismo eleva o filme até outra dimensão e desnuda para o público uma gana doentia, obsessiva e mortal, fazendo do desejo, doença e da dança, patologia. Darren Aronofsky soberbamente na direção, acerta em todas as suas investidas e jamais subestima o público. Ele não quer entregar o que propõe em cena, mas sim usar tudo como um mistério permitindo que o público julgue e compreenda como quiser essa arte.    

“Cisne Negro” possui em sua narrativa uma natureza simbólica apavorante e tensa, causando propositalmente desconforto sem nunca exagerar ou perder seu sentido. Leva o espectador até o íntimo de sua personagem. A conheceremos e reconheceremos, suas angustias são claras e sua transformação tangente elucida e inquieta. Tal como no balé, o filme cadencia, há um padrão que se submete ao sentimento e esse perturba. Este ritmo proposto por Aronofsky, tão importante o é para o filme que percebemos chegar com seu desenvolvimento a um final de espetáculo, um daqueles inabaláveis e eternizados. Um final que colabora com a vivacidade da obra tornando-a gigante, poderosa e idealmente incômoda a qual o objeto proeminente de admiração se transforma numa arma de redenção e liberdade. Não poderia ser mais poético e bonito.

E o simbolismo de um espelho quebrado não poderia ser tão fascinante.
 
 
Texto dedicado aos amigos que assistiram e reassistiram “Cisne Negro” comigo. Menciono, especialmente, meu amigo Jerônimo que ao final da sessão propôs uma relação do filme com a obra Kafkiana. Apropriadíssimo.    

2 comentários:

  1. Não poderia ser mais poético e bonito. Exatamente!

    ResponderExcluir
  2. Jerônimo Gregolini Puccisábado, 19 março, 2011

    "Não poderia ser mais poético e bonito." Não há como melhor descrevê-lo.
    O filme é-me lindo em todos os aspectos. Dês da primeira cena, uma dança com Rothbart, já encanta. A trilha sonora é um deleite aos amantes da música erudita, e o teor poético e simbólico é genial.
    Como dito na honrosa menção, parece-me que o filme foi escrito pelo próprio Kafka. Vários aspectos da literatura e do mundo kafkiano estão presentes no filme, como por exemplo: A surrealidade; a opressão da personagem principal; a morte como "salvação", entre outros.
    Não posso estender a comparação ou entrar em detalhes para não estragar a maravilhosa experiência que é assistir a este filme.
    Deixo aqui meu muito obrigado ao Marcelo e a todos amigos pelo convite e prazerosa companhia!
    Abraços e até o próximo filme!

    ResponderExcluir