Chega ao fim uma das mais
notáveis trilogias do cinema. Afirmo sem exageros e com um sorriso, dada as
circunstâncias atuais de filmes do gênero que se prezam a encher os olhos do
espectador com efeitos esquecendo-se de sua essência. E quando se trata de um
dos mais importantes personagens dos quadrinhos, fica ainda mais admirável o
respeito com a qual fora concebido. Nos é ofertado, ao longo de todos os
longas, uma série de eventos e personagens que tem subtramas cuidadosamente
compostas sendo que, dentre eles, um chama a atenção em todos os filmes: a
cidade de Gotham, essa que exerce papel fundamental a trama. É nela que tudo
acontece, é ela quem oferece a atração pelo caos abrigando os mais variados
tipos de ideologias com distintas perspectivas sociais e políticas. Um contexto
tão rebuscado, corrompido, consumido por sombras e notadamente sem esperanças
que é defendido por alguém que emergiu de suas trevas e vivenciou sua mágoa. O Batman
de Nolan vem marcar a história.
Recordamos prontamente de
Begins e o Cavaleiro das Trevas nessa terceira e última parte. Há ligas
importantíssimas que fundamentam uma trilogia e não um filme a parte. Há traços
significativos que une Ra’s Al Ghul (Liam Neeson), Jonathan Crane (Cillian
Murphy) e Harvey Dent (Aaron Eckhart) a essa trama, permitindo um arco
abrangendo histórias iniciadas formando um elo de relações pontuais. 8 anos se
passaram desde o ataque do Coringa (inesquecível na pele de Heath Ledger).
Gotham vivencia uma paz misteriosa, compreendida pelo medo em seus cidadãos que
reconhecem a origem desses novos tempos. A liberdade é observada de perto,
controlada por poderosos cuja hierarquia está em conflito contra o povo que
convive com o ideal implantado graças a morte da esperança simbolizada por
Dent. Batman desapareceu por esses 8 anos e, declarado culpado pelos
acontecimentos passados, tornou-se ameaça.
Tomada por sombras até em
tempos de harmonia, Gotham é desenhada de maneira pálida, sem beleza e
distanciada, como uma cidade esquecida tendo que resistir sozinha. Ricos que a
cercam denunciam o poderio que a oprime. Se eleva nesse meio Miranda Tate
(Marion Cotillard, sempre deslumbrando), poderosa milionária que praticamente
compete com Bruce Wayne (Christian Bale). Uma história se desenrola expondo
vínculos entre o casal levando a uma fonte de energia que mal utilizada seria
uma arma devastadora. Há uma pitada romântica envolvendo-os mais do que o poder
econômico com interesses denunciados em detalhes.
E Cotillard não é a única
presença feminina marcante. Anne Hathaway como Selina Kyle aparece tendo que
encarnar uma personagem eternizada anteriormente por Michelle Pfeiffer, a
Mulher Gato. Comparações são desnecessárias, Hathaway tem ótima presença em
cena, dá força e sensualidade – ainda mais quando veste o uniforme e monta na
moto do Batman protagonizando a única grande cena de conotação libidinosa da
narrativa – essa Mulher Gato pode ganhar um filme solo. Fechando as novidades,
o telentoso Joseph Gordon-Levitt vive John Blake, um policial preciso
corroborando a vontade de Wayne em assumir novamente a persona do homem
morcego. Uma cena em determinado ato indica o porvir de seu personagem quando
deixa um pequeno desenho, uma marca que, ao final, termina gratificante. Dentre
esses personagens novos, os já conhecidos é quem brilham. Lucius Fox (Morgan
Freeman) segue com suas elaborações impressionantes enquanto o Comissário
Gordon (Gary Oldman) tem o personagem enobrecido pela força e vitalidade.
Oldman empresta ao personagem um cansaço e uma sisudez que diagnostica um pessimismo
quanto às ameaças da cidade. Já Michael Caine com seu Alfred rouba as cenas que
aparece com uma moral racional sobre os aspectos e condições de Bruce. O
mordomo é dono dos diálogos mais tocantes da narrativa. Caine, com sua
habilidade dramática, demonstra um cuidado preocupado com um olhar temeroso
enquanto discursa paternamente salientando receios e idealizações de um futuro
sereno ao seu querido patrão.
Christopher Nolan é um dos mais
talentosos cineastas que surgiu nos últimos 20 anos. Sabe contar história como
poucos e tem habilidade em explorar questões psicológicas e sociais, permitindo
a compreensão dos contextos unidimensionais, sugerindo hipóteses aos
espectadores que participam completando lacunas, refletindo sobre o que está
posto em cena. Muito
se discute a respeito do final do ótimo “A Origem”. Por aqui isso não foge a
regra. Seu talento na direção é balanceada por parcerias freqüentes, tanto com
os atores quanto na parte técnica. O trabalho de fotografia exerce função
importantíssima em seus longas juntamente com as notórias e impressionantes
artes que contam histórias por si. Os efeitos mecânicos também contribuem para
a fluidez e ritmo. Porém, o diretor que também é roteirista – ele escreveu
Batman ao lado de seu irmão Jonathan Nolan – demonstra deficiência ao clarear
cenas de ação através da adequação dos personagens em cena. Acontece em
vários momentos aqui, o que em hipótese alguma atrapalha o filme. A violência
também é bem contida, talvez pela censura.
Há quem diga que trata-se de um
filme de herói. Me parece pouco tratando-se de Batman e de sua filosofia. Não
deixa de ter o ato heróico, a pulsão envolvente e seu fascínio. Há algo a mais
nas entrelinhas de sua conduta, de sua luta ou vingança, acerto de contas ou pura
violência. O arquétipo de Batman\Bruce Wayne é brilhantemente trabalhado. Várias
são as possibilidades de compreensão dos fundamentos do bilionário. Conhecemos
sua infância, temos acesso ao seu crescimento, suas perdas e culpas. É inegável
que seja um homem moldado pela dor que se definha nas noites retornando ferido
com sua armadura e tecnologia. Seu escape é justamente assumir o papel de
vigilante e constituir um mundo através dos olhos de quem sobreviveu a infortúnios
e decepções. Tal motivação coloca em risco incontáveis vidas fazendo os
personagens e o espectador duvidarem de sua ação e questionar a validade de
seus atos e discutir a necessidade do Batman na sociedade.
Tantas reflexões começam a
ganhar soluções quando nos deparamos com as ameaças sobre Gotham. A cidade é
palco de destruições, crimes e corrupção. Ela abriga podridão em seus becos.
Quanto aos vilões, entendemos a motivação de todos, Nolan se desprende de
maniqueísmo barato com finalidade de traduzir noções antropológicas e
sociológicas. Das trevas também surge Bane (Tom Hardy, com uma composição vocal
espetacular). O personagem que se considera um mal necessário tem um plano
claro, ele o explica antes de causar terror e matar. É ele quem fechará essa
trilogia enfrentando Batman, a polícia e os políticos, causando devastação em
nome do povo. Se o ator tinha olhares duvidosos a respeito de seu desempenho
como vilão, ainda mais depois do Coringa de Ledger, conseguiu impressionar com
imponência. Que habilidade extraordinária tem Christopher Nolan na escolha de
elenco.
Constituído criativamente e com
respeito, o filme explana conceitos abstraindo soluções risíveis em pró da
eficiência de sua idéia de refletir sobre o que está acontecendo. Fala do ser
humano, seus defeitos, medos e ambições. Fala da morte, de sua possibilidade e
do quanto ela pode fortalecer alguém. Fala da fé, fé no que é real, em si e nas
pessoas. É o que se esperava, talvez menos, dada à expectativa, porém é
eficiente em suas pretensões. Também é empolgante tanto pelos discursos tão bem
narrados, pela ação e pela trilha poderosa de Hans Zimmer. Este é um projeto incrivelmente
realista e sombrio como necessário. “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” finaliza
uma excelente trilogia com uma grandiosa história, dignificando Batman como
este merece.