domingo, 29 de julho de 2012

Proseando sobre... Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge


Chega ao fim uma das mais notáveis trilogias do cinema. Afirmo sem exageros e com um sorriso, dada as circunstâncias atuais de filmes do gênero que se prezam a encher os olhos do espectador com efeitos esquecendo-se de sua essência. E quando se trata de um dos mais importantes personagens dos quadrinhos, fica ainda mais admirável o respeito com a qual fora concebido. Nos é ofertado, ao longo de todos os longas, uma série de eventos e personagens que tem subtramas cuidadosamente compostas sendo que, dentre eles, um chama a atenção em todos os filmes: a cidade de Gotham, essa que exerce papel fundamental a trama. É nela que tudo acontece, é ela quem oferece a atração pelo caos abrigando os mais variados tipos de ideologias com distintas perspectivas sociais e políticas. Um contexto tão rebuscado, corrompido, consumido por sombras e notadamente sem esperanças que é defendido por alguém que emergiu de suas trevas e vivenciou sua mágoa. O Batman de Nolan vem marcar a história.

Recordamos prontamente de Begins e o Cavaleiro das Trevas nessa terceira e última parte. Há ligas importantíssimas que fundamentam uma trilogia e não um filme a parte. Há traços significativos que une Ra’s Al Ghul (Liam Neeson), Jonathan Crane (Cillian Murphy) e Harvey Dent (Aaron Eckhart) a essa trama, permitindo um arco abrangendo histórias iniciadas formando um elo de relações pontuais. 8 anos se passaram desde o ataque do Coringa (inesquecível na pele de Heath Ledger). Gotham vivencia uma paz misteriosa, compreendida pelo medo em seus cidadãos que reconhecem a origem desses novos tempos. A liberdade é observada de perto, controlada por poderosos cuja hierarquia está em conflito contra o povo que convive com o ideal implantado graças a morte da esperança simbolizada por Dent. Batman desapareceu por esses 8 anos e, declarado culpado pelos acontecimentos passados, tornou-se ameaça. 

Tomada por sombras até em tempos de harmonia, Gotham é desenhada de maneira pálida, sem beleza e distanciada, como uma cidade esquecida tendo que resistir sozinha. Ricos que a cercam denunciam o poderio que a oprime. Se eleva nesse meio Miranda Tate (Marion Cotillard, sempre deslumbrando), poderosa milionária que praticamente compete com Bruce Wayne (Christian Bale). Uma história se desenrola expondo vínculos entre o casal levando a uma fonte de energia que mal utilizada seria uma arma devastadora. Há uma pitada romântica envolvendo-os mais do que o poder econômico com interesses denunciados em detalhes. 

E Cotillard não é a única presença feminina marcante. Anne Hathaway como Selina Kyle aparece tendo que encarnar uma personagem eternizada anteriormente por Michelle Pfeiffer, a Mulher Gato. Comparações são desnecessárias, Hathaway tem ótima presença em cena, dá força e sensualidade – ainda mais quando veste o uniforme e monta na moto do Batman protagonizando a única grande cena de conotação libidinosa da narrativa – essa Mulher Gato pode ganhar um filme solo. Fechando as novidades, o telentoso Joseph Gordon-Levitt vive John Blake, um policial preciso corroborando a vontade de Wayne em assumir novamente a persona do homem morcego. Uma cena em determinado ato indica o porvir de seu personagem quando deixa um pequeno desenho, uma marca que, ao final, termina gratificante. Dentre esses personagens novos, os já conhecidos é quem brilham. Lucius Fox (Morgan Freeman) segue com suas elaborações impressionantes enquanto o Comissário Gordon (Gary Oldman) tem o personagem enobrecido pela força e vitalidade. Oldman empresta ao personagem um cansaço e uma sisudez que diagnostica um pessimismo quanto às ameaças da cidade. Já Michael Caine com seu Alfred rouba as cenas que aparece com uma moral racional sobre os aspectos e condições de Bruce. O mordomo é dono dos diálogos mais tocantes da narrativa. Caine, com sua habilidade dramática, demonstra um cuidado preocupado com um olhar temeroso enquanto discursa paternamente salientando receios e idealizações de um futuro sereno ao seu querido patrão.  

Christopher Nolan é um dos mais talentosos cineastas que surgiu nos últimos 20 anos. Sabe contar história como poucos e tem habilidade em explorar questões psicológicas e sociais, permitindo a compreensão dos contextos unidimensionais, sugerindo hipóteses aos espectadores que participam completando lacunas, refletindo sobre o que está posto em cena. Muito se discute a respeito do final do ótimo “A Origem”. Por aqui isso não foge a regra. Seu talento na direção é balanceada por parcerias freqüentes, tanto com os atores quanto na parte técnica. O trabalho de fotografia exerce função importantíssima em seus longas juntamente com as notórias e impressionantes artes que contam histórias por si. Os efeitos mecânicos também contribuem para a fluidez e ritmo. Porém, o diretor que também é roteirista – ele escreveu Batman ao lado de seu irmão Jonathan Nolan – demonstra deficiência ao clarear cenas de ação através da adequação dos personagens em cena. Acontece em vários momentos aqui, o que em hipótese alguma atrapalha o filme. A violência também é bem contida, talvez pela censura. 

Há quem diga que trata-se de um filme de herói. Me parece pouco tratando-se de Batman e de sua filosofia. Não deixa de ter o ato heróico, a pulsão envolvente e seu fascínio. Há algo a mais nas entrelinhas de sua conduta, de sua luta ou vingança, acerto de contas ou pura violência. O arquétipo de Batman\Bruce Wayne é brilhantemente trabalhado. Várias são as possibilidades de compreensão dos fundamentos do bilionário. Conhecemos sua infância, temos acesso ao seu crescimento, suas perdas e culpas. É inegável que seja um homem moldado pela dor que se definha nas noites retornando ferido com sua armadura e tecnologia. Seu escape é justamente assumir o papel de vigilante e constituir um mundo através dos olhos de quem sobreviveu a infortúnios e decepções. Tal motivação coloca em risco incontáveis vidas fazendo os personagens e o espectador duvidarem de sua ação e questionar a validade de seus atos e discutir a necessidade do Batman na sociedade.  

Tantas reflexões começam a ganhar soluções quando nos deparamos com as ameaças sobre Gotham. A cidade é palco de destruições, crimes e corrupção. Ela abriga podridão em seus becos. Quanto aos vilões, entendemos a motivação de todos, Nolan se desprende de maniqueísmo barato com finalidade de traduzir noções antropológicas e sociológicas. Das trevas também surge Bane (Tom Hardy, com uma composição vocal espetacular). O personagem que se considera um mal necessário tem um plano claro, ele o explica antes de causar terror e matar. É ele quem fechará essa trilogia enfrentando Batman, a polícia e os políticos, causando devastação em nome do povo. Se o ator tinha olhares duvidosos a respeito de seu desempenho como vilão, ainda mais depois do Coringa de Ledger, conseguiu impressionar com imponência. Que habilidade extraordinária tem Christopher Nolan na escolha de elenco. 

Constituído criativamente e com respeito, o filme explana conceitos abstraindo soluções risíveis em pró da eficiência de sua idéia de refletir sobre o que está acontecendo. Fala do ser humano, seus defeitos, medos e ambições. Fala da morte, de sua possibilidade e do quanto ela pode fortalecer alguém. Fala da fé, fé no que é real, em si e nas pessoas. É o que se esperava, talvez menos, dada à expectativa, porém é eficiente em suas pretensões. Também é empolgante tanto pelos discursos tão bem narrados, pela ação e pela trilha poderosa de Hans Zimmer. Este é um projeto incrivelmente realista e sombrio como necessário. “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” finaliza uma excelente trilogia com uma grandiosa história, dignificando Batman como este merece.


quarta-feira, 25 de julho de 2012

Proseando sobre... O Abrigo


Curtis é um homem trabalhador, além de um pai exemplar, afetuoso e protetor. Tem uma esposa dedicada, Samantha (Jessica Chastain, ótima) e uma filha com deficiência auditiva, Hannah (Tova Stewart), que está prestes a realizar uma cirurgia. Igualmente a todas as famílias, essa tem seus problemas, inclusive os financeiros. Todavia, o emprego de Curtis garante-lhes um bom plano de saúde que pode cobrir grandes despesas, entre elas a da cirurgia. Um alívio. Toda forma de defesa é bem vinda, e depositando no papel de pai a lógica do cuidado, eventos que oferecem risco logo devem ser quebrados. A psicanálise coloca que, diferente do animal, o homem tem a possibilidade de postergar instintos. Tal afirmação tem devida validade nessa obra de Jeff Nichols, ao constatarmos a função paterna, a função de Curtis e seu zelo.  

A história de O Abrigo (Take Shelter, 2011) se passa numa pequena cidade em desenvolvimento no estado de Ohio. Em tempos de resoluções e economias, Curtis começa a ter pesadelos acompanhados de ilusões sobre ameaças externas a sua família, especialmente à pequena Hannah. Essas ameaças dizem respeito a uma forte tormenta com conseqüências catastróficas. Tais visões são compreendidas como pressentimentos, presságio de um futuro próximo e sempre são veiculadas a pessoas, animais ou objetos de seu contexto. Algo precisa ser feito, e tudo sai às escondidas. Os conflitos formados por esse aspecto mental dá movimento a uma série de eventos cujas hipóteses de ordem simbólica, metafísica e social refletem um transtorno. Um abrigo subterrâneo precisa ser construído para garantir segurança. Tal fato quando realizado vai indubitavelmente contra o cenário paisagístico retratado pela fotografia de Adam Stone, aparentando não apresentar qualquer ameaça. A composição desse ato é outro artifício simbólico: em meio a retratação bucólica iluminando os campos esverdeados, Curtis abre um buraco, proposição de um caos fortuito originando naquela terra, em si.

O diretor e roteirista Jeff Nichols explana um assunto bastante utilizado no cinema, a saúde mental, de uma maneira bem enfocada num personagem e sua mutação, à medida que vai tomando consciência de sua condição. É alguém que questiona o que está lhe ocorrendo e assume ter necessidade de ajuda, indo em busca de psiquiatras e psicólogos. Porém, temente a realidade, não deixa de efetuar a construção demandada por sua crença, buscando recursos para montar um abrigo, um tipo de forte bem equipado que possa manter sua família segura. O traço obsessivo dessa realização é muito bem definido pelo ótimo Michael Shannon, inexplicavelmente esquecido nas premiações recentes.

A habilidade do ator em clarear seu desespero em virtude da possibilidade de seu feito é fascinante, através de um olhar temeroso e de uma dicção insegura. O drama é suficiente, bem equilibrado, sem buscar saída em pieguices ou em costumes comuns de comoção pungente. Nichols, que já trabalhou com Shannon em Shotgun Stories,  ainda se aventura num subgênero, com nuances de horror, aplicado nas visões sempre com retratação onírica cujas cores frias modelam um universo fantasioso, seja nas nuvens turvas se aproximando ou nos pássaros rondando em bando como se anunciassem um infortúnio. A afetação no protagonista leva a severos desconfortos tanto no âmbito familiar com a família questionando sua atitude excessiva quanto no social, prejudicando inevitavelmente seu trabalho.

O ideal desse personagem que merece um estudo mais profundo diz respeito ao cuidado como amparo e medo. Mais do que a angústia apocalíptica, há uma história proeminente de seu passado afligindo possibilidades, embora as negue. A tomada de consciência viabiliza a compreensão do fato particular, algo visto em determinado ato quando precisa abrir uma porta. No entanto, como defesa, lhe resta a segurança espantada. Circula-se nessa narrativa incitações psicológicas e questões de fé, esse segundo é um motivador para a elaboração de seu propósito como quem anuncia o juízo final exaustivamente, causando pânico. Não distante da história de Noé, que foi ordenado a montar uma barca para salvar sua família – Darren Aronofsky trará em breve esta história aos cinemas –, Curtis acredita ter um propósito, o que implica na realidade e dá forma a essa extasiante obra.  

* Esta crítica foi publicada primeiramente em http://www.cineplayers.com/critica.php?id=2446



sexta-feira, 20 de julho de 2012

Proseando sobre... Valente


A nova produção da PIXAR se equipara a contos de fadas da Disney, aqueles meticulosos que apresentam famílias em crise, reinos com príncipes e princesas buscando o amor. Tudo muito bonito, mas já encheu! São tantos tão reconhecidos. Ainda soma-se nesta contextualização a intervenção de uma bruxa. Logicamente a comparação se restringe unicamente ao universo criado. A lógica é outra. Ufa. Vindo dos estúdios que já realizou obras como “Toy Story” e “Wall-e”, era de se esperar algo bem mais fértil que um longa de caráter romântico arbitrário com tipificações corriqueiras e um mero felizes para sempre ao final. Isso naturalmente não é um spoiler. Falo sobre o molde costumeiro do era uma vez propriamente dito. Não que isso seja ruim, afinal a animação não foge da idéia da fábula, da fantasia. Pode-se dizer que a PIXAR também se recuperou do tropeço passado, o fraquíssimo “Carros 2”, que manchou uma história de grandiosas concepções. 

Acompanhamos Merida, uma menina de cabelos ruivos que cresceu admirando a força e gana por combate do pai, o que ia contra os princípios de sua mãe, desejosa em ver a única filha tornar-se uma notável dama e seguir a tradição matrimonial de seu povo. Duas épocas distintas são colocadas: a primeira exposta logo no início quando conhecemos a família da pequena, o dia em que ganhou seu primeiro arco. É coincidentemente o mesmo dia que um ataque de um monstruoso urso causou uma ferida no patriarca. Em outro momento, no presente da trama, Merida está crescida aguardando por um casamento que nunca quis. Passado na Escócia Medieval, o longa traz uma garota heroína, dispensando o pragmatismo de um filme sobre princesas esperando pelo príncipe encantado. 

A PIXAR é ambiciosa e muda o comum centrando dessa vez numa princesa que não quer terminar a história com um beijo apaixonado. Os príncipes propostos aqui são guerreiros provindos de um povo que subjuga a mulher colocando-a a margem de suas ações em guerra. São registros da história da civilização que o diretor Mark Andrews constata em seu primeiro longa – ele dirigiu o ótimo curta “A Banda de um Homem Só”. “Valente” é artisticamente impecável. É de longe a mais rica e detalhada entre todas as produções do estúdio. A beleza exuberante dos cenários impressiona abrangendo o vigor bucólico do cenário, castelos, armas primitivas e campos esverdeados, os mesmos que foram manchados de sangue em conflitos posteriores quando o país lutou por liberdade. Mas isso não vem ao caso. 

Animações carregam morais. Com essa não é diferente. Por mais simplista que pareça e previsível que se revele o arco dramático leva a conotações tradicionais dos tipos de relações e do que um espera do outro, especialmente quando se trata de pais e filhos. A mudança de paradigma é um tabu. Através dos anos muita coisa mudou. Classes que anteriormente eram vistas inferiorizadas ganharam seu espaço e respeito com respaldo na dignidade do humano em sua condição no mundo. Tantas barreiras quebradas são retratos óbvios de tantos filmes, inclusive neste. Sua protagonista ruiva cujos cabelos representam inegavelmente seu aspecto emocional mostra-se corajosa em lutar contra um sistema imposto e conquistar sua individualidade orgulhosa com valentia. 

Escrito por Irene Mecchi e Brenda Chapman, ambas tem um bom currículo envolvido com animações, o filme pincela ideologias enquanto fragmenta visões. Há uma mensagem feminista nas entrelinhas esboçada pelas ações e reações dos personagens ao redor. Dentre brutamontes que se divertem com violência e se alimentam devorando sem zelo, a rainha surge com fineza estabelecendo a diferenciação. Não é difícil notar também o respeito quando esta está presente, ou até mesmo quando sua filha aparece, freando conflitos dado seu desfile marcante e imponente, pondo tudo em ordem. E tratando-se de mulher, a sensualidade das personagens também é exaltada. Não é um dos mais notáveis trabalhos da PIXAR, é até pequeno demais e preocupante dependendo do ponto de vista, porém é ótimo perceber que a exuberância técnica da empresa continua crescendo e que ela siga concebendo ótimos e inesquecíveis personagens.  

 

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Proseando sobre... Shame


Segundo trabalho entre o diretor inglês Steve McQueen com o talentoso Michael Fassbender – o primeiro foi o sórdido “Fome” que arrancou elogios por onde passou – “Shame” é um drama intenso, pesado e difícil. Vai muito além de um protagonista sofrendo por seu desejo, é uma ratificação ao prazer insuportável, custoso. Não foge ao padrão da adicção, da constatação do gozo como maldição, acarretando-lhe danos, pois sugere, inteligentemente, uma persona condenada à dependência sexual, como poderia ser a qualquer outra coisa, sofrendo continuamente. O mundo retratado é o pesar de um sujeito viciado em sexo, ou melhor, no orgasmo, e suas duras investidas para nutri-lo.

Brandon Sullivan (Michael Fassbender) é um executivo de sucesso, bem vestido, saudável e dono de um bonito apartamento. Bem sucedido na vida profissional, seu demônio é o social que, embora aparente ser um sujeito notório, demonstra total falta de calor humano, conservado na frieza de sua cobiça enquanto observa mulheres – como um fumante olhando um cigarro ansiando por consumi-lo. Prostitutas, casos nada românticos, incitações e pornografia fazem parte de seu dia a dia. Na jornada de trabalho é acrescentada transas furtivas e masturbações escondidas. Nas manhãs, acorda solitário com os lençóis bagunçados na cama de casal.  

McQueen é um cineasta que visa o poder sensorial de seus filmes, priorizando longos diálogos e silêncios marcados pela aflição. Os detalhes mínimos são impactantes, como o flerte no metrô, ou a canção “New York, New York” – uma das mais marcantes cenas do filme – em que reporta ao passado de seus protagonistas. O diretor ainda explora a veemência de seu elenco, apostando na capacidade destes, tão bem escolhidos, em expressar sentimentos indizíveis. Michael Fassbender faz isso como poucos atualmente, ao lado da excepcional Carey Mulligan, igualmente ativa. É quando sua personagem surge que os conflitos emergem. 

Sissy Sullivan surge repentinamente no apartamento de Brandon numa cena que revela, de imediato, a relação entre ambos enquanto esta toma banho e seu corpo aparece nu. O caos se estabelece. Tempos seguintes acessamos um pouco de suas histórias e características, entre sorrisos e constrangimentos. Ambos também são marcados pelo contraste de suas personalidades: enquanto ele denota toda sua frieza numa espécie de imponência inatingível, com trajes escuros ressaltando sua individualização, a moça se apresenta extrovertida, calorosa, cujas volúpias denunciam sua extravagância. A composição desses personagens é esplêndida, enriquecendo o paradigma de seu público testemunhando as ações. 

A solidão recorrente nos irmãos é coesa às pretensões da narrativa. Tudo soma a tristeza dos traços de ambos, dignificando suas buscas incessantes. A fotografia turva explana o contexto sem vida que reside Brandon, este que, ao tomar consciência de sua disposição, lança-se a mudanças influenciadas por estímulos externos. O ato em que uma mulher lhe desperta interesse no metrô não só pelo que esta pode lhe oferecer sexualmente é genial, pois atestamos em cena posterior sua incapacidade sexual quando o foco de sua cobiça se transforma por não estar buscando unicamente o gozo.
Indo mais longe à medida que sua narrativa cadenciada delonga, o filme traz laços afetivos de outros personagens: o chefe de Brandon, por exemplo, mantendo distanciamento da família, se aventurando nas noites atrás de mulheres. Tal fato ocasiona uma confusão maior na vida do protagonista, amigo íntimo do chefe, assistindo de perto uma vida familiar certa posta em risco de desmanchar. As divagações do roteiro assinado por Abi Morgan e pelo próprio McQueen se arriscam em outros núcleos compondo um universo hostil a liberdade desejada pelo ser humano, o que garante a afinidade de muito espectador. “Shame” é um filme poderoso, intenso, cuja melancolia expressa no olhar de Michael Fassbender denuncia o inferno de seu personagem: a adicção pelo sexo, o desejo pelo objeto (fonte de prazer sem importar gênero). Belíssimo estudo de personagem!

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Proseando sobre... O Espetacular Homem-Aranha


Quando o primeiro “Homem-Aranha” surgiu, a novidade vista em tela logo tomou grandes proporções chegando a vários públicos com o charme e a aventura fantástica contagiante, cujos recursos cinematográficos davam um gás nunca visto até então no cinema convencional. Era sensacional para a época. Desta obra dirigida por Sam Raimi, originaram outras duas constituindo uma boa trilogia. Eis que agora tudo se renova, ao menos na produção. Outros rostos por trás e em frente à tela conceberam este “O Espetacular Homem-Aranha”, um reboot que está mais para uma revisitação do primeiro filme, algo que, de imediato, causa estranheza. É o mesmo com outra vertente. Comparações são inevitáveis, porém desnecessárias. Franquias desse tipo sempre irão se renovar. O risco é a graça do gênero se perder. Aliás, já está se perdendo.   

A agraciada comédia romântica “(500) Dias com Ela” rendeu bons frutos ao diretor Marc Webb. Ele fora chamado para assumir a nova trilogia do aracnídeo. O que se vê então de contraste com essa e aquela primeira versão lançada em 2002? A paixão de Sam Raimi, fã dos quadrinhos frente à perspectiva de Webb que está prestes a se firmar em Hollywood. A ideologia sobre responsabilidades de seu protagonista segue pregada, no entanto o ideal germinado toma outros rumos sobre a persona Peter Paker. O ator Andrew Garfield que vive o herói já demonstrava talento lá em “Leões e Cordeiros”, esteve em “O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus” e fez sucesso em “A Rede Social”, mas foi no ótimo “Não me abandone jamais” que comprovou habilidade dramática. Garfield é, sem dúvidas, o melhor Peter Parker do cinema. Ele entrega todo o universo desse personagem com facetas de um autêntico nerd sofrendo na escola e nos relacionamentos. O roteiro viabiliza oportunidades para o ator trabalhar o protagonista, entre eles alguns apoios visuais enlaçados a direção artística: por exemplo a composição de seu quarto com aparatos tecnológicos e o pôster de “Janela Indiscreta” estampando o personagem vivido por James Stewart representando tão bem seu hobbie, a fotografia. 

Essa noção de personagem é bem conduzida por Webb que trabalha igualmente bem com Emma Stone que encarna Gwen Stacy, o primeiro amor de Peter; e Rhys Ifans que empresta o corpo ao cientista Dr. Curt Connors. O trio bem trabalhado tem motivações esclarecidas, embora algumas coisas ignoradas pelo roteiro – com intenções óbvias de se trabalhar futuramente – se mantenha, às vezes comprometendo o desenvolvimento do texto. Por exemplo a história relacionada ao desaparecimento dos pais de Peter Parker. A narrativa é mal amarrada, é acelerada embora o filme conte com uma longa duração. Ao menos nada é gratuito, temos tempo de conhecer trajetórias, os medos e inseguranças convertidas em fundamentos e princípios tornando o herói suficientemente complexo. A identidade escondida, algo essencialmente introduzido na trilogia de Raimi, não é uma preocupação aqui. Parker tem a face exposta em vários momentos enquanto traja o uniforme. 

Filmado em 3D, algo que aparentemente Marc Webb não tem tanta prática, o que se destaca no longa são os bons efeitos sem a tridimensionalidade. Já nem vale tanto elogiar os efeitos especiais. São melhores que nos filmes anteriores, claro, no entanto parecem pequenos comparados a novidade de outrora. Hoje este artifício já não é tão exaltado por ser demasiado comum e notadamente obrigatório em produções semelhantes. O mérito é exclusivamente da história, de seus bons personagens. Emma Stone, carismática e com uma voz inconfundível, é rejuvenescida para viver Gwen Stacy aos 17 anos. Ao lado de Garfield, um casal mais comovedor do que Tobey Maguire e Kirsten Dunst é formado. Martin Sheen nos entrega um ótimo Tio Ben ao passo que Sally Field, que teve o grande momento da carreira estacado nos anos 80, faz uma Tia May pouco verossímil. 

A ótica desse início de franquia abraça novos contextos e se fixa na ciência, na possibilidade de criação, da perfeição. Desta maneira, o ótimo Duende Verde vivido idoneamente por Willem Dafoe dialoga com Dr. Curt Connors num aspecto mental, estando Rhys Ifans edificando o bom antagonista com suas contradições e privações. “O Espetacular Homem-Aranha” é filme de caracterizações cuja força se mantém nos seus bons personagens, mas que se perde no desenrolar da história quando restringe-se a uma rede de coincidências. O cara que gosta da moça vai travar um duelo com o mentor dessa enquanto escapa da perseguição do policial que, naturalmente, tem vínculo direto com a mesma mocinha. Basicamente é isso. O tempero da trama, por sua vez, é o humor dos personagens e as caras e bocas destes. Não faltam piadas e gags inflamando risadas. É de fato um filme divertidíssimo, pequeno perante a representação de quem é o “Homem-Aranha” de Stan Lee, mas convincente, descompromissado e leve. Um ar da graça para uma geração que não acompanhou o que Sam Raimi realizou.  


segunda-feira, 2 de julho de 2012

Proseando sobre... A Era do Gelo 4


Eis uma quarta aventura para a trupe dos carismáticos e divertidos protagonistas de “A Era do Gelo”, animação que vem marcando o cinema com humor pontual e crítica ambiental há exatos 10 anos. Todavia, a criatividade e a graça contínua empregada nos longas do início da franquia congelaram. Tudo está repetitivo e aborrecido, sem qualquer novidade, a não ser o aparecimento de novos personagens – desculpa para prováveis futuras explorações – e conjunções a respeito da constituição da terra a partir dos desastrosos atos de sua mais ilustre figura, o esquilo Scrat. 

Manny (voz de Ray Romano), Diego (voz de Denis Leary) e Sid (voz de John Leguizamo) retornam com a história girando em torno do mamute. Seu excessivo cuidado paterno causa severas intrigas e palavras dolorosamente disparadas minutos antes de um desgelo fulminante que termina por separá-lo da família quando uma cratera eclode em sua frente. O continente se rompendo rima com o relacionamento fraterno se desfazendo, deixando sobre um iceberg os inseparáveis amigos à deriva no oceano enquanto do outro lado assenta o remorso. Perdidos no mar, têm início uma odisséia para o trio – e mais um – que enfrentará riscos como a fúria de uma tempestade, sereias e o avanço de piratas navegando num navio de gelo, liderado pelo inescrupuloso macaco Entranha (voz de Peter Dinklage). 

Quem ficou de fora dessa quarta empreitada foi o cineasta brasileiro Carlos Saldanha (diretor dos 3 primeiros filmes) que vem se dedicando a animação “Rio”. A bomba caiu sobre as mãos da dupla Steve Martino e Mike Thurmeier – este segundo dividiu a direção com Saldanha em “A Era do Gelo 3”. Familiarizados com esse universo, ambos tratam com responsabilidade a leveza da trama, preparando um filme enxuto e alegre, condescendente a um público jovem que não sofreu com o notável desgaste da série. Intrigas tolas e relações estremecidas por orgulho e conotações românticas defendidas pela esquiva para não demonstrar interesse – surge um par romântico para Diego – são algumas repetições de idéias usuais que fizeram mal a franquia que conta com respingos de real valia quando Scrat está em cena em doses. Esses curtos instantes são ao menos o bastante para empurrar a história. Sua associação com Atlântida é certamente o melhor momento do filme.     

Há uma dramatização acompanhando a família dos mamutes quando a filha de Manny, a adolescente Amora, culpa o pai por um fracasso amoroso. Nesse âmbito se expõe as possibilidades de relações com uma impregnada moral de auto conhecimento e respeito pelo outro, não importando gênero, etnia, raça etc etc. Tudo é realizado de maneira infantil e pouquíssimo eficiente, travestindo valores por interesse pessoal e estereótipos típicos da adolescência, acentuando o bullyng no distanciamento de um determinado grupo por não corresponder as expectativas deste. 

A qualidade da narrativa é ignorada em nome da diversão, com passagens realizadas unicamente para o feitio da tridimensionalidade buscando impressionar com a profundidade das cenas ilustrando as magnânimas geleiras ou o oceano dançando enquanto espirra água na tela. O formato compreendendo a moda se mistura com tipificações do cotidiano, transitando vagamente por noções de caráter humano representados por animais: o abandono graças ao envelhecimento, a família em discórdia, a cultura de um povo causando estranhamento social, o respeito pela diferença e a loucura questionada. 

Já o âmbito técnico é irrefutável. O cuidado na composição dos personagens é tremendo com detalhes significativos bem trabalhados, por exemplo os pêlos e os olhares. O desenho de produção auxiliado ao 3D contribui para o universo refletido, enobrecendo as belas paisagens compostas por imensas geleiras, ilhas perdidas no horizonte e o alto mar. Nestes cenários de rebuscadas elaborações visuais, o longa mantém a igualitária qualidade de seus antecessores. Pra somar, boas cenas de ação são criadas, dominando a ótica da violência daquele tempo de modo contido por óbvias razões. Uma cena veiculada a “Coração Valente” garante uma boa piada aos mais crescidos. Diante tantas questões, a fraqueza da empreitada é perceptível, sua necessidade de se reinventar faz-se necessária para derreter a má impressão desta continuação infeliz.