quarta-feira, 6 de junho de 2012

Proseando sobre... Beleza Adormecida


O universo estabelecido por Julia Leigh é no mínimo atraente. Dito isso, vale acrescentar sobre essa atração inúmeras perspectivas: a filosófica, que reflete o corpo de uma jovem como objeto de prazer; a metáfora, relacionada ao conto de fadas, sobrepondo aquela construção fantástica a realidade infeliz; o sensorial, nitidamente arrastado, contrapondo a vagarosa angústia de viver em circunstâncias despudoradas; a perversão nos atos, algo estabelecido no fetiche de homens com suas manias e sensos; e pela arte, implícita nos manejos fílmicos da roteirista e diretora, exprimindo uma idealização desejosa sobre uma bela jovem nua e frágil entre quatro paredes.

Mais do que assistir e acompanhar a narrativa, parece ser preciso senti-la, por mais custoso que possa ser. Não é difícil se flagrar incomodado em alguns instantes, vários deles cadenciados, mostrando o dia a dia de uma jovem que precisa pagar os estudos. Numa gráfica, sobrevive a um vazio particular, um tempo aturdido e humilhante, e não sendo o bastante tal malogração, seu salário não paga o que deve. É preciso de mais. Sem nada a perder, se interessa por um anúncio no jornal. Aí, talvez, podemos compreender a inserção dela em solo estranho, num lugar em que ela deve servir homens usando lingerie. Mas isso é real.

O filme passa, se delonga e menos informações nos são dadas. A narrativa atravessa um período sumo sobre seu tempo, numa vida em que nada, ou pouquíssima coisa, realmente acontece. O acúmulo de serviços demonstra uma vida rasa, cujo sentido propagado emana solidão. E o que importa nesse meio? O que realmente quer sua protagonista? Não temos esse acesso. Parece não ser o interesse. A vida passa, simplesmente passa e Lucy não vive, é vivida. Acontece que seu trabalho de servir era apenas uma porta de entrada para uma outra e incomum prática: ela precisa ser sedada durante um chá, e durante seu sono, homens passam a noite com ao seu lado. Há uma regra, sem penetração.

A prostituição dessa jovem pequena e delicada é evidenciada através de takes longos em que não só seu corpo é mostrado, mas o cenário inteiro, funcionando como um complemento artístico, como se fosse uma pintura moderna. A direção artística é fecunda ao explorar a palidez de sua estrela naquele contexto. O corpo nu da bela atriz australiana Emily Browning parece remeter a uma idéia de tratar-se de uma jovem ainda não desenvolvida em sua plenitude. É um desespero silencioso, nos adentramos nesse âmbito indolente, com um olhar distante sobre o que acontece entre as quatro paredes de um quarto luxuoso, entre homens ricos e idosos cujos corpos envelhecidos apavoram. E nós fazemos parte, testemunhamos como voyeurs, afinal, estamos em um dos lados do cubo projetado.

Indicado a Palma de Ouro, esta obra pode ser compreendida como retrato moderno, cujos valores deturpados atingem a sociedade e sua individualidade, sua serenidade inerte ao ser, aos outros. Tem boa técnica, a diretora faz uso de elipses como adornos a sua vagarosidade. Aí reside a beleza do filme não acontecido, não concretizado, como atributo significativo ao que a sociedade vigilante é, especialmente quando uma câmera é instalada por Lucy, por curiosidade, para saber o que acontece durante seu sono. Tudo fica em aberto e passível de discussões. É de beleza marcante, porém sem vida, que a primeira incursão de Julia Leigh no cinema transcorre, numa contemplação artisticamente vivaz e de simbolismos atordoantes.


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