sábado, 17 de setembro de 2011

Proseando sobre... Melancolia


 Lars von Trier narra distúrbios afetivos entre seus personagens enfatizando duas irmãs, Justine e Claire. De uma maneira próxima ao seu filme antecessor, “Anticristo”, o diretor explora o longa a partir de um prólogo intimamente simbólico e artístico, e divide-o em exatas duas partes. O filme ganha status de cinema de autor, o estilo von Trier empregado é identificável em toda a realização, o que certifica sua ótica em relação ao mundo, sempre pessimista, olhando o outro como indivíduo passivo de sofrimento e dor, sentimentos subitamente recorrentes e inevitáveis, e quando uma causa maior – nunca divina – provoca comoção comum, percebe-se, segundo sua visão, uma nova certificação: a necessidade do outro como segurança, mesmo que ela seja fantasia.

“Melancolia” exprime a dinâmica de relações familiares e profissionais naquela que deveria ser uma grande festa de casamento. A primeira parte, intitulada e centrada em Justine, traz a jovem vivida por Kirsten Dunst comemorando seu matrimônio com Michael (Alexander Skarsgård). Constantemente sorridente e demonstrando satisfação pela presença dos familiares e amigos, revela uma comoção fingida quando confronta os ideais de sua mãe (Charlotte Rampling), claramente amarga condenando a união da filha, provavelmente como desgosto a sua vida de casada com Dexter (John Hurt), este que se mostra passivo com relação às filhas, se importando muito mais com algumas convidadas.

O segundo momento, nomeado Claire, acompanha a angústia da irmã de Justine, muito bem interpretada por Charlotte Gainsbourg, capturada pela notícia do planeta Melancholia se aproximando da Terra. Temente com a possibilidade do fim, e isso reflete diretamente sua condição enquanto mãe, a mulher, embora de aparência serena, expressa seu terror frente aos dias em que o estranho planeta se aproxima. Buscando crer na afirmação de seu marido John (Kiefer Sutherland) de que não há perigo de ocorrer um choque, se afasta de notícias e se concentra como válvula de escape no casamento da irmã. John até desconfia de que a esposa tenha acessado a internet a fim de saber mais notícias do evento como referência a aflição prevalente da dúvida.

Concentrado na mulher, como feito nos estupendos “Dogville”, “Manderlay” e “Dançando no Escuro”, o diretor e roteirista insere símbolos durante toda a projeção, explicitando nas minúcias daquele contexto do durante e pós festa, a relação prevalente daquela família. Claire às vezes diz que não suporta a irmã, mas contraditoriamente a tem por perto como alívio. Seu cunhado oferece sua mansão e o campo de golfe para a construção da festa e pede em troca algo tocante e de certa forma revelador, denunciando quem é Justine. Na exuberante cena inicial, takes lentos emergem o espectador no universo do longa, trazendo as irmãs vivenciando o cuidado e a solidão deprimente – se destaca nesse meio, como ligação com o mundo, Justine presa no que parecem ser raízes.

Não só isso, os significados atribuídos por von Trier vão de encontro a crença de seus espectadores, o que permite várias interpretações sobre um mesmo fato, como o campo de golfe e o estranho número 19 no ato final, ou na contemplação quase mística de Justine completamente nua iluminada por Melancholia. Essa discussão aberta torna o filme ainda maior e prova a genialidade do diretor em alcançar o âmago de seu público com crueza e autenticidade, sem entregar respostas prontas, mas permitir discussão e reflexão. E se tratando da iminência do fim, se agarrar a algo como consolação faz parte do ser humano. Aí entra a proposta da fé não importando quem está certa, a ciência ou a religião. Ambos são devidamente representados, o primeiro pelo conhecimento de astronomia de John, já o outro pela função do cavalo cujo nome Abraham, ou Abraão, faz a menção religiosa. Não é só um que pode montá-lo, como sugestiona um personagem. Há ainda outra indagação, a limitação do animal quando este não consegue atravessar uma ponte trazendo como metáfora a incapacidade de sua dona atravessar algumas situações. Acaba punido.

Com câmera em punho, tradicionalmente trêmula, mas com impressionante domínio espacial e sensorial, o diretor entrega um projeto artisticamente esplêndido, alinhado a uma fotografia opressiva de Manuel Alberto Claro. É fascinante o potencial de von Trier na direção, captando detalhes e explorando com solicitude seu ótimo elenco. Kirsten Dunst vive sua mais importante personagem – sua conquista de melhor atriz no Festival de Cannes é benemérita. Demonstrando sempre uma dualidade de sentimentos, Dunst contrasta bem sua necessidade em parecer satisfeita com sorrisos aparentes refutando sua real sensação, deprimida, carregando uma expressão esgotada com lágrimas reprimidas.

Servindo também como objeto de estudo tanto de personagem como da filosofia empregada, “Melancolia” atinge seu ápice em seu fim. O estranho planeta que se aproxima carrega o título do longa, se revela após ter se escondido atrás do sol, igualmente a quem passou por alguma depressão ou tristeza contínua, resguardando o inevitável, a melancolia. Quando esta surge, desconforta, deprime e perdura. Um estudo Freudiano sobre o filme renderia longas constatações. Ao final, a narrativa submete ao acalento, a possível catástrofe anunciada exalta a esperança depositada no outro, aí o humano se distingue. O medo nos olhos da criança, sem compreender exatamente a dimensão do acontecimento, é confortada em quem considera mais forte, o Quebra-aço, aquela que há muito tempo está a espera do fim e, uma vez preparada, afaga.

2 comentários:

  1. Preciso conferir, adoro demais o Von Trier.

    http://cinelupinha.blogspot.com/

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  2. Uau !! Uma das melhores resenhas que já li.. rsrs
    Impossível não ter vontade de assistir depois de ler suas considerações sobre o filme! Pelo que foi dito realmente o filme pareçe ser uma obra de arte. :)

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