René Sampaio, diretor estreante, assumiu um
grande desafio quando decidiu filmar uma das mais célebres canções de Renato
Russo. A história composta em versos tinha cara de cinema, seus ouvintes por
vezes se pegaram imaginando a saga do tal João de Santo Cristo e
inevitavelmente idealizaram a história como se lessem um livro de memórias.
Felizmente o cinema é uma arte capaz de fotografar. Os personagens então
ganharam forma e “Faroeste Caboclo” passou a existir de fato nas telonas, sendo
um filme simples, correto, crítico e cativante. Esses são atributos suficientes
para garantir a simpatia dos ferrenhos fãs da banda brasiliense e dos cinéfilos
que foram à procura de um bom filme. E mais, esse é um feliz exemplar do cinema
comercial nacional.
A liberdade narrativa do roteirista Marcos
Bernstein dá dinamismo ao longa metragem já que este fundamenta-se na história
original não seguindo-a inerentemente. Constatamos na abertura um duelo. Vem na
mente o final da canção. A composição de cena é característica do bom e velho
faroeste, com menções a John Ford e Sergio Leone, longe do oeste selvagem, mas
num campo deserto de um local qualquer em Brasília. Um salto no
tempo e o filme se enche de harmonia. Brevemente somos apresentados ao passado
do protagonista ainda criança, vivenciando injustiças e assistindo trágica
morte do pai. Crescido, sentia que era diferente e que o sertão não era o seu
lugar. Da Bahia para Brasília. O filme se expande.
Fabrício Boliveira assume o papel central com
tamanha dignidade que orgulha. Encarna um João de Santo Cristo marginalizado,
esquecido em terras usurpadas por governantes, dominada pelo militarismo e
torneada com preconceitos. Igualmente competente, Isis Valverde exprime uma
delicada e melancólica Maria Lúcia, ressentida obscuramente na capital brasileira.
Por último Felipe Abib dá entonação distinta ao vilão Jeremias, adequada ao
contexto social, um mauricinho traficante com a polícia na mão. Quando João
surge traficando para seu primo Pablo, os negócios de Jeremias ficam ameaçados.
O duelo se delonga para gangues locais armadas, criando o clima de faroeste
belamente fotografado, referenciado com o sol radiante e cruel de Brasília.
Lançado comercialmente em todo o Brasil, o filme
vem ser uma faísca de esperança para o cinema comercial brasileiro acostumado a
lotar salas com comédias banais. Um sopro de originalidade num cruel cenário de
ignorância artística, onde grandes obras não têm merecidas oportunidades. O
elenco é promissor, tecnicamente a obra é eficiente por, principalmente, manter
o espírito de Western e caracterizar a capital segundo os anos 80, num trabalho
oportuno da direção artística combinada a elementos cênicos. Buscando instalar
as críticas contidas na longa canção, o diretor lança tudo sem centrar em algo
especificamente, já que tudo que acontece soa orgânico com problemas existentes
e perdurantes tanto na época retratada quanto nos dias de hoje. Tudo é bem
regido por René Sampaio que, convicto, se entrega a paixão artística do cinema
de gênero, encontrando tempo para sutis críticas sociais sem maiores aprofundamentos.
Não faltam bons momentos que inexistem nas
canções. Vale mencionar o período em que o protagonista está preso. Temos
acesso a passagem de tempo através de fotografias diárias em retratos com
jornais. Este é um elemento que não só funciona como transição temporal, mas
explicativo quanto às motivações de alguns personagens. E estes estão
admiravelmente interessantes, vividos por um elenco bem escolhido. No apoio o
filme ainda conta com nomes como Antonio Calloni e Marcos Paulo em um de seus
últimos trabalhos.
E em relação à música e a história? O cinema tem
outra linguagem e faz a adaptação com suas mudanças e nuances necessárias para
fazer sentido. A série de acontecimentos narrados na canção tomam forma
encontrando outros rumos, amenamente distanciados daqueles tratados nos versos.
No entanto identificamos cada um. “Faroeste Caboclo” revela-se um filme
realista e empolgante. Realista por tratar de um problema político-social, com
a epopéia de um jovem negro pobre sem rumo – e apesar de ser contextualizado
nos anos 80, no Planalto Central, funciona indubitavelmente nos dias de hoje. E
empolgante, ainda mais para os fãs do Legião Urbana, já que abre com os acordes
da música e a sensação nostálgica, quase que inevitável para quem viveu os anos
80 e 90, fica ternamente a favor da obra.
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